Memórias da FACOM
Capítulo 2 — uma união controversa

A Universidade Federal da Bahia era uma jovem adulta de 21 anos de idade, e o curso de Jornalismo apenas uma criança que nem chegara aos 10, quando — em 1967 —começou a ser implementado o plano de reestruturação da UFBA, elaborado há alguns anos antes em paralelo às discussões sobre a Reforma Universitária em todo o país. Na prática, a reforma na UFBA foi pioneira e antecipou a Lei n° 5.540, conhecida como Lei da Reforma Universitária. A ideia era renovar a instituição, acadêmica e administrativamente, incluindo nessa reestruturação a reorganização de suas faculdades e escolas.

 

Dentre todas, a situação da Faculdade de Filosofia — berço do primeiro curso de Jornalismo na Bahia — era tida como a menos sustentável. Uma das maiores em número de alunos e portadora do maior número de cursos da UFBA, a instituição permanecia nas mesmas instalações. Os vários cursos que constituíam a Faculdade, apesar da rica convivência, também resultaram em uma situação curiosa: a existência de vários professores, que ministravam a mesma área do saber, ligados a diferentes cursos da instituição.

 

Foi nesse fôlego que, em 1968, a reforma culminou com o processo de desligamento do curso de Jornalismo da Faculdade de Filosofia. Uma questão primordial, no entanto, gerava discussões dentro da universidade: onde alocá-lo?

“Não tinha lugar para Jornalismo e essa era uma discussão intensa”, Othon Jambeiro, discente da Faculdade de Filosofia (1964-66) e docente da UFBA (1972).

No Conselho Universitário, muitos defendiam que o curso de Jornalismo tinha como caminho natural se juntar ao de Biblioteconomia. O argumento? Ambos lidam com informação. “Isso provocou uma oposição enorme. Jornalismo não queria, Biblioteconomia tão pouco. O CONSUNI foi pressionado para mudar de ideia e o próprio reitor, na época Roberto Santos, também foi pressionado a reverter a situação”, relembra Othon Jambeiro, que, junto com o curso de Jornalismo, vivenciou seu próprio período de transição: de aluno da Faculdade de Filosofia, formado em 1966, para, seis anos depois, docente do curso de Comunicação da UFBA.

 

Na época, alguns até levantaram a bandeira da criação de uma Faculdade de Comunicação, com a abertura de cursos como o de Relações Públicas, Publicidade e Radiodifusão. Se a ideia se concretizasse, a UFBA seria a segunda universidade no país a ter uma faculdade do tipo. No entanto, o sonho foi adiado em quase 20 anos e a Escola de Biblioteconomia e Comunicação (EBC) foi fundada em 1968, no lugar da faculdade almejada.

 

A escolha por juntar ambos os cursos se mostrou, mais tarde, não só uma decisão administrativa. Participante ativo dos encontros que ocorriam entre professores e estudantes durante a época, Antônio Dias, que mais tarde seria contratado como docente da EBC, revela que a decisão era também uma consequência direta da ditadura militar. “Percebemos que, não só na Bahia, outras universidades juntaram os cursos de Comunicação com os de Biblioteconomia, sob a justificativa de que o curso de Jornalismo na Faculdade de Filosofia ficava muito politizado”, confidencia.

 

Com sede na Avenida Araújo Pinho, no bairro do Canela, a EBC permaneceu por um ano no local em que hoje (2022) funciona a Secretaria Geral de Cursos. Logo depois, a Escola seguiu para sua casa definitiva, na Avenida Reitor Miguel Calmon (Campus do Canela), espaço que presenciou muitos dos embates que ocorreram entre os dois cursos ao longo dos 18 anos de “casamento arranjado”.

 

 

 

Confira, no mapa interativo, os locais de Salvador pelos quais os cursos de Comunicação da UFBA passaram

 

 

O casamento arranjado

Quem passava pela EBC percebia que a junção entre os dois cursos era notadamente forçada. “Era uma junção artificial na verdade”, relembra Albino Rubim, aluno do curso de Comunicação da UFBA entre 1972 e 1975. “Os professores eram diferentes para os dois cursos e os estudantes eram de tribos muito distintas. Tratava-se de uma escola muito conservadora”, relembra Albino Rubim.

 

“O pessoal olhava pra gente como se fôssemos  hippies, desajustados”, rememora Albino. “Já em Biblioteconomia, na época, eram pessoas muito organizadinhas. Então… era estranho”, explica. O à época estudante lembra de um episódio em que uma Semana de Informação, evento organizado pelos discentes, teve que ser interrompida ao meio: “A diretora temeu porque convidamos algumas pessoas que foram muito críticas”, afirma Rubim.

 

Além das diferenças comportamentais, a divergência entre os dois cursos repercutia para além da vivência universitária, atingindo a administração da Escola. “Tínhamos caído em uma armadilha”, revela Othon Jambeiro. “O curso de Jornalismo foi para a EBC com apenas um departamento, que era o Departamento de Jornalismo, enquanto Biblioteconomia possuía dois — um de Biblioteconomia e um de Documentação. Com isso, nunca conseguimos eleger para diretor um professor do Departamento de Jornalismo”, lamentou.

Sem poder defender seus interesses de forma mais objetiva e longe do poder de decisão dentro da EBC, o curso de Jornalismo tornava-se cada vez menos atrativo. Dos docentes, pouquíssimos eram contratados com dedicação exclusiva e menos ainda eram os que possuíam títulos além da graduação. Apesar de contar com muitos profissionais conceituados do Jornalismo como docentes, a ausência de professores em tempo integral e a existência de contrários precários com os docentes comprometia o curso baiano.


Albino Rubim fez parte dessa leva de professores contratados de forma precária. “Tínhamos um contrato de professor horista. Contratavam-nos em março, em junho nos despediam e recontratavam em agosto. Em dezembro nos despediam, para contratar no início do outro período letivo”, descreve a situação. “Era de uma mesquinharia total”. Apesar disso, dentro da EBC, os professores colaboradores, assim chamados, tentavam melhorar a situação do curso, propondo uma reforma do currículo que, ao fim, não foi aprovada. “Nós ficávamos meio ilhados; tentávamos fazer as coisas, mas era sempre algo limitado”, ressalta.


Nas salas de aulas, o curso carecia de recursos mínimos para a aprendizagem da prática jornalística e das teorias da comunicação. “Investimento para o nosso curso não existia”, revela o professor Antônio Dias. “Até mesmo a bibliografia trazíamos de casa para emprestar aos alunos. O professor de telejornalismo desenhava a câmera no quadro negro, porque não tinha nem mesmo um monitor. Você não diz que a Faculdade de Comunicação, que seria criada anos depois, teve origem ali. Era uma estrutura muito pobre”, confessa.

Separação de corpos

Um ofício enviado pelo Departamento de Comunicação em 21 de outubro de 1977 anunciava que o descontentamento com a união forçada entre Jornalismo e Biblioteconomia estava cada dia maior. “Esse ajuntamento foi imposto e jamais foi digerido pelos docentes, funcionários e discentes. Trata-se de um casamento forçado e mal-sucedido. Os departamentos não têm programação conjunta, é uma unidade sem unidade”, afirmava o documento.

 

Àquela altura, os alunos reivindicavam uma separação física enquanto a separação legal não vinha. Pretendiam a transferência das atividades do curso de Jornalismo para as instalações do antigo Colégio de Aplicação, unidade de educação básica mantida pela UFBA que havia sido desativada alguns anos antes. A expectativa da separação física, no entanto, não se concretizou. Não antes, ao menos, do Departamento de Jornalismo conseguir eleger pela primeira vez um docente do quadro para o cargo de vice-diretor da EBC, em 1980. “Compus a chapa juntamente com a professora Maria José Rabello, que se comprometeu comigo de implantar a Faculdade de Comunicação”, afirmou Antônio Dias.

 

A eleição de Antônio Dias não poderia ter chegado em um momento melhor. O clima na EBC ficava cada vez mais desagradável e os estudantes reivindicavam seu espaço com ainda mais afinco. Agora com maior poder administrativo e de influência junto à reitoria da UFBA, a movimentação dos alunos e alunas de Jornalismo finalmente encontrava eco.

 

“Em 1984, os estudantes se aborreceram e fizeram um movimento forte”, recorda Othon Jambeiro. “Dentro desse movimento, surgiu a proposta de invadir uma área da universidade que servisse para o curso”. A área escolhida, onde hoje (2022) funciona o Instituto de Saúde Coletiva da UFBA (Canela), era anteriormente ocupada pela Biblioteca Central e já havia sido sede da Casa da França. Com o prédio vazio, os alunos ocuparam, reivindicaram e conquistaram o novo espaço para o curso de Jornalismo. Com a separação de corpos, discutir o divórcio da EBC e a independência do curso de Jornalismo ficará, agora, mais fácil. “Esse passo foi fundamental porque nós já tínhamos um prédio para separar. A partir daí, a luta passou a ser com o prédio, reformar e adaptar para receber os laboratórios e as salas de aulas. Essa situação foi o embrião da Faculdade de Comunicação”, acredita Othon.